quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Parábola do Grande Inquisidor


Quando o século XV dava lugar ao XVI, Jesus voltou. Reapareceu na Espanha, nas ruas de Sevilha. Nenhuma fanfarra saudou seu advento, nem coros de anjos, nem espetáculos sobrenaturais, nem extravagantes fenômenos meteorológicos. Ao contrário, ele chegou “de mansinho” e “sem ser visto”. No entanto, vários passantes o reconheceram, sentiram uma irresistível atração para ele, cercaram-no, amontoaram-se à sua volta, seguiram-no. Jesus andou com toda modéstia entre eles, um suave sorriso de “inefável misericórdia” nos lábios, estendeu-lhes as mãos, concedeu-lhes sua benção; e um velho na multidão, cego de infância, milagrosamente recuperou o dom da visão. A multidão chorou e beijou o chão a seus pés, enquanto jogavam flores à sua frente, cantavam e erguiam as vozes em hosanas.
Nos degraus da catedral, um préstito em prantos conduzia para dentro um caixãozinho aberto. Em seu interior, quase escondida pelas flores, jazia uma criança de sete anos, filha única de um cidadão importante. Exortada pela multidão, a mãe enlutada voltou-se para o recém-chegado e implorou-lhe que trouxesse de volta a menina morta. O cortejo fúnebre parou, e o caixão foi deposto ais pés dele nos degraus da catedral.
- Levanta-te, donzela! – ele ordenou em voz baixa, e a menina logo se pôs sentada, olhando em volta e sorrindo, os olhos arregalados de espanto, ainda a segurar o buquê de rosas brancas que fora colocado em suas mãos.
Esse milagre foi testemunhado pelo cardeal e Grande Inquisidor da cidade, quando passava com seu séquito de guarda-costas – “um velho, de quase noventa anos, alto e empertigado de estatura, com uma cara enrugada e olhos muito fundos, nos quais, no entanto, ardia um brilho de luz. Tal era o terror que ele inspirava que a multidão, apesar das circunstâncias extraordinárias, caiu em diferente silêncio e abriu-se para dar-lhe passagem. Tampouco, o recém chegado foi sumariamente preso pelos guarda – costas e levado para a prisão.

O verdadeiro significado da parábola está no que vem depois do dramático prelúdio. Pois o leitor espera, claro, que o Grande Inquisidor fique devidamente horrorizado ao saber da verdadeira identidade do seu prisioneiro. Não é isso, porém, que acontece.

Quando ele visita Jesus na cela, está claro que sabe muitíssimo bem quem é o prisioneiro; mas esse conhecimento não o detém. Durante o prolongado debate filosófico que se segue, o velho permanece inflexível em sua posição. Nas escrituras, Jesus é tentado pelo demônio no deserto com a perspectiva de poder, autoridade, domínio secular ou temporal sobre o mundo. Agora, um milênio e meio depois, ele se vê diante exatamente das mesmas tentações. Quando resiste a elas, o Grande Inquisidor o manda para a estaca.
Jesus reage dando no velho um beijo de perdão. Arrepiando-se, o beijo “ardendo no coração”, o velho abre a porta da cela:
- Vai-te - ordena – e não voltes mais. Não voltes nunca, nunca mais!
Libertado na escuridão, o prisioneiro desaparece, para jamais tornar a ser visto. E o grande Inquisidor, com plena consciência do que acabou de acontecer, continua apegado aos seus princípios, a impor seu reinado de terror, a sentenciar outras vítimas – muitas vezes claramente inocentes – às chamas.
Como se pode ver neste resumo um tanto simplificado, o Grande Inquisidor de Dostoiévski não é nenhum tolo. Ao contrário, sabe muito bem o que está fazendo. Sabe que carrega uma onerosa e debilitante responsabilidade sobe os velhos ombros – a de manter o poder civil, o status da Igreja fundada em nome do homem que havia pouco ele estava disposto a condenar à execução. Sabe que a Igreja fundada em nome daquele homem é em última análise incompatível com as doutrinas do mesmo homem. Sabe que a Igreja se tornou autônoma, a proverbial lei em si, não mais dando a César o que é de César, mas usurpando-o, presidindo seu próprio império.
Desde que Os Irmãos Karamázovi foi publicado e traduzido, o Grande Inquisidor de Dostoévski gravou-se em nossa consciência como a imagem e a encarnação definitivas da Inquisição.

2 comentários:

  1. Olá. Dostoiévski...Único!! Deixo um link de um blog: http://retalhosdearte.blogspot.com/2010/02/ser-paga.html, abraço!

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